terça-feira, 16 de maio de 2023

 14 de Janeiro de 1995

Antônio Callado na Folha de são Paulo fala de uma homenagem a Tom Jobim no Jardim Botânico 


dificuldade –como tem sido a minha– de evocá-lo satisfatoriamente. Tom tinha uma qualidade de fantasia, de "whimsey", difícil de captar. Acho que ele jamais foi visto objetivamente irritado com alguém, alguma coisa, argumentando contra.
Sua tendência era quebrar a realidade, seu gênio era partir o tempo todo para a cisma, o "nonsense". Pão-pão, queijo-queijo ou preto no branco sumiam logo da mesa em que ele se sentasse. A irrealidade criadora, leve, tomava o lugar da lógica que mesmo num bar tende a nos escravizar.
No meio de alguma conversa mais insistente, ou de pessoas que exigem respostas claras e contundentes, ele gostava muito de apelar para os versos. Citava de repente um nome de poesia, ou recitava. Em português ou em inglês. Bloqueava o caminho de qualquer conversa chata com a pedra de Drummond. Ou adorava degustar e comentar as primeiras linhas do poema de T.S. Eliot: "April is the cruellest month". Por que será abril o mais cruel dos meses? Sem dúvida porque vem depois das águas de março.
Em 1987 morreu nos Estados Unidos um artista que, como Tom Jobim, foi de necrológio difícil. Cantava com um filete de voz que era um filete de água pura. Dançava e sapateava –mesmo encartolado, de casaca e sapatos de verniz– como se tivesse aprendido o truque dos saltos pela receita de Nijinski, que era subir do chão com toda a força e descer bem devagarinho.
Chamava-se Fred Astaire e consolidou sua fama, leve e fina como a de Tom, a partir de 1933 em "Voando para o Rio", filme em que apareceu pela primeira vez dançando ao lado de Ginger Rogers. Fred Astaire ficou como um sonho americano de graça e espiritualidade, que nunca se materializou de novo. Temo que Tom Jobim, em essência, continue nos escapando e fique para sempre inatingível.
Restam as músicas, graças a Deus, os filmes e os livros, mas a capacidade de saltar da realidade de repente e só voltar ao chão bem devagar, essa infelizmente não grava, não filma, não imprime. É verdade que ficam, também, as mansas piadas. Terça-feira, na plena badalação do Jardim Botânico, julguei ouvir de repente a voz de Tom, me dizendo num cicio de folha: "Não precisava ter tanta gente pisando na grama".
Finalmente, quero sugerir aqui um dos possíveis meios de preservar a memória de Tom Jobim. Eu pediria a algum dos seus tantos amigos pintores e cartunistas que tentasse guardar para os vindouros o mapa do Rio de Janeiro de Tom, fincado no Jardim Botânico e deitando raízes na direção da Plataforma e da Cobal do Leblon, seus refúgios prediletos dos últimos tempos, e dos bares e boates do passado, em que ele primeiro apareceu ao lado de Vinicius, antes de se cruzarem os dois como placa, respectivamente, de avenida e rua, em Ipanema.
O que me deu a idéia foi um antigo mapa de Nova York desenhado por Saul Steinberg. É a ilha de Manhattan, cercada por seus três rios e dividida em condados paradisíacos que se chamam Bordeaux, Bourgogne, Slivovitz, Dom Pérignon.

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