quarta-feira, 19 de abril de 2023

 " O que transforma algo tão simples em música tão incrível, tem a ver com as harmonias, por um lado, que vão colorindo de sentidos cambiantes essas poucas notas repetidas e, por outro, com a prosódia, a relação entre palavra e melodia, que confere acentos rítmicos inesquecíveis a cada pedaço de melodia e significados afetivos não menos impossíveis de esquecer.


A mitologia de imagens e costumes da bossa nova -o cantinho e o violão-, artificiosa e generosamente inventada por seus próprios artistas ,,," 


Arthur Nestrovski


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A música de Tom Jobim representa a ambição de uma modernidade leve para o Brasil que, às vezes, ressurge teimosa


 Lorenzo Mammì


(...) as melodias de Jobim são profundamente originais. Tortuosas e assimétricas, alternam momentos de serenidade e de angústia, imobilidade hipnótica e desvios surpreendentes, concluindo muitas vezes de maneira inesperada, com um acorde estranho à tonalidade. Como num conto, grande parte do fascínio delas deriva do aparecimento de peripécias que não podemos prever e que, no entanto, uma vez ouvidas, parecem perfeitamente lógicas. Mais que estruturas tonais, elas sugerem esquemas narrativos. Todas as músicas de Jobim parecem fadadas a carregar letras, mesmo quando foram escritas como peças instrumentais. O fato de ter se cercado de letristas de sensibilidade musical excepcional e de ter sido ele próprio um excelente letrista, não é apenas um ponto de força, mas uma necessidade de sua obra. Suas canções contêm frases que são pinturas sonoras, verdadeiros madrigalismos: a pluma que oscila ao vento em "A Felicidade"; o "soft evasive mist" de "Bonita"; "Chovendo na Roseira", do começo ao fim. Mas não é essa, a meu ver, a questão principal. O que aproxima essas linhas melódicas da fala são, muito mais, seus perfis irregulares, soltos, que evitam enfatizar os centros harmônicos, acentuando quase sempre notas estranhas ao acorde. São evitados saltos grandes, que afastariam o canto da prosa. A melodia procede passo a passo por longos trechos. Final esfuziante Nesse contexto, toda alteração cromática, todo intervalo mais amplo se tingem de um sentido expressivo. Sendo portadoras de um sentimento, as alterações da escala são por sua natureza únicas e fugidias..."


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Em muitas de suas músicas, Tom Jobim cria uma estrutura melódica mínima, baseada em poucas notas que serão repetida sob diferentes caminhos harmônicos. Para que isso funcione bem, para que essas melodias mínimas não percam em impacto emocional, não se tornem pobres, foi preciso que houvesse um desenvolvimento, uma ampliação do uso expressivo dos acordes. 


 A tensão subtraída à melodia, agora sumariamente reduzida, é compensada por uma harmonia rica, dissonante. A fórmula soa paradoxal: um elemento ultra simplificado é imantado por outro de extrema complexidade; a timidez melódica apóia-se na exuberância harmônica. Esta, por sua vez, altera a percepção que se tem da melodia – e aí está a jogada. Vamos imaginar a cena de um teatro-canção. Os acordes formam o cenário enquanto a melodia é o personagem principal. A própria forma como percebemos este último vai depender da moldura que o enquadra. 

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Na (“Quanta gente existe por aí…”) é a melodia que passa a se deslocar por todas as notas da escala, e a harmonia, se não chega a ficar parada num só acorde, torna-se no geral mais simples, sem grandes dissonâncias, evoluindo em convencionais saltos de quinta – e não mais no deslizamento cromático do início. A composição se estrutura a partir do desdobramento de uma célula mínima que projeta diferentes harmonias e jamais retorna sobre si mesma (o mais corrente entre os compositores populares é justamente o oposto: organizar a canção em torno de um ciclo harmônico mais ou menos fechado, que vai sendo preenchido pela melodia).


Paulo Costa e Silva


Trechos de artigos da Folha de São Paulo

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